E agora, José?
Artigo publicado na coluna da Roberta Soares, no Jornal do Commercio,
Recife, edição de 11/02/24
Francisco Christovam
Ao tomar emprestado a primeira linha do famoso poema, presto minhas
homenagens a Carlos Drummond de Andrade que, em 1942, publicou essa obra
prima da literatura brasileira. O José do poema enfrenta uma crise existencial e
não sabe que caminho tomar na vida. Seu impasse serve também para ilustrar,
no sentido mais literal, os desafios da mobilidade urbana, enfrentados pelos
muitos Josés, Marias e tantos outros que vivem nas cidades brasileiras e que se
veem sem opção de melhores caminhos para os seus deslocamentos diários.
Quem é o nosso José?
José é um trabalhador que, como milhões de brasileiros, mora na periferia de
uma cidade brasileira de médio porte. Tem quase 40 anos de idade, é casado,
pai de dois filhos adolescentes e eleitor que vota, assiduamente, em todas as
eleições. Ele adora futebol e, nos finais de semana, encontra os amigos, num
barzinho próximo à sua casa, para tomar uma cerveja e jogar conversa fora,
como se diz no jargão popular. Ele é proprietário de uma motocicleta, de
segunda mão, que comprou à prestação, e tem orgulho em dizer que está
fazendo um curso de técnico em informática. Todo dia, José acorda por volta
das 04 horas da manhã, toma um café requentado, come um pãozinho
comprado no dia anterior, escreve um recado para a esposa, num papel que
encontrou sobre a mesa, e parte para a sua jornada de trabalho.
Como José chega ao trabalho?
José sai de casa, com o celular no bolso traseiro da calça, caminha por ruas
estreitas e escuras do bairro onde mora e vai até uma avenida não muito
próxima, onde passa o ônibus que o leva até o trabalho. Fica esperando pelo
ônibus, por um tempo relativamente longo, numa paragem erma, identificada
por um poste de madeira que tem, no topo, uma placa metálica enferrujada,
com uma inscrição quase apagada, onde se lê "ponto de ônibus". O local mal
iluminado não oferece nenhuma segurança e conforto ou qualquer informação
sobre o itinerário da linha ou sobre os horários de partida e de chegada dos
coletivos. A viagem até a empresa onde trabalha começa por volta das 05 horas,
num ônibus bem cheio, que circula por ruas e avenidas esburacadas.
O veículo para em quase todos os cruzamentos existentes ao longo do itinerário
e divide o espaço viário com outros ônibus e todo tipo de carros, motos e
caminhões de entrega, que circulam pelas vias públicas. Ao longo da viagem,
José conversa com várias pessoas e comenta que a viagem poderia ser bem
mais rápida e confortável se os ônibus tivessem prioridade na via e pudessem
circular em faixas exclusivas ou corredores de transporte, numa operação
controlada, livre dos congestionamentos. José chega ao seu destino por volta
das 7:00 horas, cansado. Já pensou em ir trabalhar de moto; mas, depois que
um amigo sofreu um grave acidente, desistiu da ideia, principalmente, pelo
trânsito mais carregado, nos horários de pico.
Como é a jornada de trabalho do José?
José trabalha num estabelecimento comercial. Assim que chega à loja, coloca
seu uniforme e se dirige ao balcão para começar o atendimento aos clientes. Ao
longo da sua jornada, conversa com seus colegas que, como ele, têm uma rotina
parecida — todos moram em bairros afastados e dependem do transporte
coletivo. Alguns até têm carro ou moto; mas, preferem usar o transporte
público por razões econômicas. José sempre comenta que sua vida poderia ser
bem melhor, se ele contasse com um transporte "bom, bonito e barato".
Nessa expressão popular estão contidos conceitos muito importantes, ou seja,
transporte "bom" é aquele cujo serviço inclui regularidade, confiabilidade,
segurança e conforto; transporte "bonito" significa usar ônibus de boa
qualidade, novos ou seminovos, limpos e bem conservados, que circulam por
ruas e avenidas bem mantidas e bem sinalizadas, com comunicação clara e
objetiva aos passageiros; e transporte "barato" é o serviço prestado com o
pagamento de uma tarifa módica, subsidiada pelo poder concedente —
prefeituras e/ou governos estaduais e federal — para que o passageiro não
tenha que arcar, sozinho, com todos os custos da produção do serviço.
Como José volta para casa?
Ao final do expediente, José encerra suas atividades e se dirige, novamente, a
um ponto de ônibus, para iniciar sua viagem de volta para casa. Mais uma vez,
ele encontra amigos com quem vai passar outras duas horas ou mais dentro do
ônibus, conversando sobre os mais variados assuntos, inclusive sobre o
desconforto da viagem. Recentemente, um colega lembrou a ele que, neste
ano, haverá eleições municipais e essa é uma oportunidade para escolher
prefeitos e vereadores que possam melhorar a qualidade dos serviços de
transportes oferecidos à população. Seu amigo comentou, também, que o
serviço já foi bem pior do que é hoje, e contou o que ouviu em um debate na
televisão, sobre transporte público. Ele explicou que toda a infraestrutura
necessária a um bom desempenho dos ônibus — pontos de parada, abrigos,
estações de embarque e desembarque, terminais de transferência e a própria
pista de rolamento — é de responsabilidade do órgão público que contrata os
serviços, ou seja, a Prefeitura, no caso das linhas urbanas, e o Governo do
Estado, para as linhas intermunicipais. E, isso vale, também, para as rotas e
horários, que têm que ser cumpridos pelas empresas, seguindo as
determinações do poder público.
Seu companheiro de viagem falou ainda sobre as várias iniciativas, em
discussão, atualmente, para garantir um transporte coletivo que melhor atenda
às necessidades da população: a desoneração da folha de pagamento das
empresas e a reforma tributária, que podem reduzir o custo do serviço e o
preço da tarifa para o passageiro; os subsídios públicos às passagens, que
podem chegar até a zerar a tarifa, como já acontece em mais de 100 cidades; a
descarbonização da frota de ônibus, com a substituição de ônibus por veículos
novos que poluem menos. Parte dessas mudanças, disse-lhe o amigo, podem
ser resolvidas com a aprovação do novo marco legal do transporte público, que
tramita no Congresso, e que vai estabelecer novas regras na relação entre o
poder concedente e as empresas privadas, que operam os serviços de
transportes de passageiros.
O que José espera das autoridades?
José voltou para casa pensando sobre o que ouviu. Concluiu que essas medidas
anunciadas, apesar dos nomes técnicos e de difícil compreensão, podem
significar, de fato, mudanças positivas na prestação do serviço, facilitando seu
deslocamento diário e melhorando sua qualidade de vida; afinal, depender do
transporte público e gastar mais de 4 horas, todos os dias, para ir da sua casa ao
trabalho e voltar, não é algo muito prazeroso, para se dizer o mínimo. Ele está
convicto de que, daqui para a frente, as autoridades precisam enxergar o
transporte coletivo urbano de passageiros como um serviço público essencial e
estratégico, direito do cidadão e dever do Estado, conforme previsto na própria
Constituição Federal, segundo lhe disse o amigo.
Ele também acredita que essa transformação pela qual o setor passa, com uma
mudança de visão por parte das autoridades, das empresas operadoras e dos
próprios passageiros, precisa resultar na utilização de ônibus de melhor
qualidade, com menores impactos ambientais, uso de infraestrutura adequada,
redução do valor das tarifas e melhoria nas informações que são fornecidas para
quem usa o serviço. Isso significa que os projetos ou as iniciativas em curso
devem levar em conta que os tributos incidentes na prestação dos serviços de
transporte por ônibus serão, inevitavelmente, transferidos para a tarifa pública;
que as mudanças tecnológicas, em especial a descarbonização da frota, que
reduzirá a poluição das cidades, não poderão resultar em aumento dos custos
transferidos à população que usa o transporte coletivo; e que o marco
regulatório, que deverá melhorar as relações institucionais e contratuais entre o
poder público e a as empresas operadoras da iniciativa privada, precisa ser
percebido e ter um significado específico para quem usa o transporte público
coletivo. Para ele, todas essas iniciativas são muito importantes e necessárias;
porém elas só fazem sentido se puderem garantir a prestação de um serviço de
qualidade, de baixo custo, com características de universalidade e de
acessibilidade, até hoje nunca experimentados.
Por tudo o que José tem conversado com seus amigos, nas próximas eleições de
outubro, ele vai buscar candidatos e candidatas que mostrem compromissos
com o transporte público. Ou seja, que defendam propostas reais, necessárias e
factíveis; que tratem o transporte público como serviço público fundamental
para a vida das cidades; invistam na melhoria da infraestrutura necessária para
a prestação de um serviço de qualidade, com prioridade ao transporte coletivo;
respeitem os contratos de concessão ou permissão com as empresas
operadoras, para que elas possam dispor de uma frota de ônibus, modernos,
confortáveis e com baixa idade média; e, também, garantam uma tarifa pública
módica aos passageiros, para que mais gente queira usar esse meio de
transporte, em seus deslocamentos diários.
Francisco Christovam é Diretor Executivo (CEO) da Associação Nacional das Empresas de
Transportes Urbanos – NTU, Vice-Presidente da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado de São Paulo – FETPESP e da Associação Nacional de Transportes Públicos – ANTP, bem como membro do Conselho Diretor da Confederação Nacional do Transporte – CNT.