Divisão do objeto do contrato de transporte público

27/09/2023

O artigo 175 da Constituição Federal estabelece que "incumbe ao Poder Público,
na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre
através de licitação, a prestação de serviços públicos".

Francisco Christovam

O contrato de concessão ou de permissão, instrumento jurídico imprescindível
para estabelecer as regras da relação entre o poder concedente e a empresa
privada, responsável pela assunção da gestão e da execução dos serviços
públicos delegados, deve se submeter aos ditames da legislação aplicável, em
especial da Lei Federal Nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, mais conhecida
por Lei das Concessões.
Já a Lei Federal Nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004, instituiu uma forma de
concessão especial, por meio de parceria público-privada (PPP), nas
modalidades patrocinada ou administrativa, cujo objetivo é a contratação de
serviços – com ou sem obras – a serem fornecidos pelo agente privado, com
remuneração apenas pelo governo (concessão administrativa) ou em uma
combinação de recursos públicos e tarifas cobradas dos cidadãos que usam o
serviço (concessão patrocinada).
O artigo 23 da mencionada Lei das Concessões reza que esses contratos devem
conter cláusulas essenciais relativas ao objeto, área e prazo da concessão; ao
modo, forma e condições da prestação dos serviços; aos critérios, indicadores,
fórmulas e parâmetros definidores da qualidade do serviço; ao preço do serviço
e aos critérios e procedimentos para o reajuste e a revisão das tarifas. Trata,
ainda, dos direitos, garantias e obrigações do poder concedente e da
concessionária; dos direitos e deveres dos usuários para obtenção e utilização
do serviço; da forma de fiscalização das instalações e dos equipamentos, bem
como dos métodos e práticas de execução do serviço, entre outras.
Desde a época da primeira república (1889-1930), quando os primeiros
contratos de concessão foram assinados, principalmente para a construção de
ferrovias e fornecimento de serviços públicos de abastecimento de água, gás,
eletricidade e transportes, o objeto contratual deve ser preciso e considerar um
eventual ganho de escala na prestação dos serviços de utilidade pública. Os
prazos contratuais, por sua vez, são estabelecidos em função do tempo
necessário para remunerar e amortizar os investimentos realizados pelo
concessionário.
Não se pode deixar de considerar as peculiaridades do processo licitatório e da
legislação que a fundamenta, notadamente, quanto ao objeto a ser licitado ou,
no caso, concedido. Isso porque, a indivisibilidade do objeto da contratação,
quando se trata de serviços de transporte coletivo, deve ser cuidadosamente
avaliada, considerando os termos da nova Lei de Licitações e Contratos (Lei
Federal Nº 14.133/2021). Quando a Administração Pública defini o objeto do
futuro contrato de concessão ou de permissão, deve ter em mente o disposto
no inciso I, do artigo 11, onde consta como um dos seus objetivos "assegurar a
seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso
para a Administração Pública, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do
objeto", sem deixar de considerar os aspectos gerais da Lei de Concessões (Lei
Federal Nº 8.987/1997).
De fato, a definição precisa do objeto a ser contratado, de maneira a refletir o
interesse público e a real necessidade da Administração, é elemento
indispensável e essencial para o sucesso da futura contratação, cuja doutrina é
soberana nesse sentido. Segundo o entendimento do prof. Marçal Justen Filho,
em "Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos", 15ª edição,
2012, Editora Dialética, pag. 590, "definir o objeto da licitação, para fins do art.
38, significa indicar o bem ou a utilidade a ser contratados. A indicação do
objeto deverá ser sucinta. A regra visa evitar que a complexidade da descrição
dificulte a compreensão de eventuais interessados. Essa descrição deverá
permitir imediata apreensão do âmbito da licitação. Nesse campo, a atenção
dos eventuais interessados poderia ser prejudicada tanto pela excessiva
prolixidade quanto pela omissão dos tópicos essenciais."
Mais recentemente, com as discussões sobre a substituição de veículos movidos
a óleo diesel por veículos menos poluentes – movidos a eletricidade,
biocombustíveis, gás metano ou hidrogênio – cujo preço de compra é bem
superior ao do ônibus convencional, surgiu a possibilidade de um novo modelo
de negócio e de um novo modelo de investimento para a aquisição da frota. De
forma simplificada, a frota pode ser adquirida pelo poder público ou por um
"financiador" e a empresa privada fica, somente, com a operação dos veículos,
incluindo ou não os serviços de manutenção do material rodante.
Em paralelo, há discussões acaloradas sobre a transferência dos serviços de
comercialização de créditos de transportes e de gestão de meios de pagamento
a terceiros, atribuindo essas funções a uma empresa pública ou mesmo a uma
empresa da iniciativa privada, desde que essa empresa não seja a empresa
operadora da frota. Acrescente-se a essas discussões o debate sobre a
propriedade das garagens, como fator que dificulta a renovação das empresas
operadoras, por ocasião das licitações para a contratação dos serviços de
transportes. Há quem defenda que as garagens devem ser propriedade do
poder concedente, para facilitar a participação de novas empresas nos novos
processos licitatórios.
Não há nenhuma razão para afirmar que os contratos de concessão devem
permanecer exatamente como eram no início do século XIX; entretanto, não
parece razoável dizer que estamos lidando com uma nova tendência ou mesmo
com qualquer tipo de aprimoramento na contratação dos serviços de
transportes. Se, de um lado, existem mais de 3 mil contratos de concessão ou
permissão de serviços de transportes vigentes no País, cujo objeto considera a
aquisição da frota, a gestão da bilhetagem ou da cobrança de tarifas, a
disponibilização da garagens, bem como a operação e manutenção dos veículos,
de outro, existem apenas algumas pouquíssimas tentativas de dividir o objeto
contratual, com resultados ainda totalmente incertos e não comprovados.
É importante registrar que a divisão ou separação do objeto a ser contratado
não deve ser confundida com fracionamento ou parcelamento do objeto
contratual, termos com significado próprio na linguagem jurídica. Nesse sentido,
o prof. Marçal Justen Filho, ao comentar o § 1º, do artigo 23, da Lei Federal Nº
8.666/93, em "Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos",
Editora Revista dos Tribunais, 2014, pag. 365, diz: "As contratações devem ser
programadas na sua integralidade, sendo indesejável a execução parcelada.
Aliás, se o objeto do contrato for um conjunto integrado de bens e (ou) serviços
– configurando-se um sistema – o fracionamento da contratação não será
meramente indesejável, mas sim impossível.... Em princípio, todas as
contratações fracionadas são executas simultaneamente. Na situação da
programação parcelada, a Administração executa um certo objeto em etapas –
o que significa uma dissociação temporal na execução do objeto."
Mas, a divisão ou separação do objeto dos contratos de concessão não precisa
ser, preliminarmente, rejeitada ou descartada; porém, a sua adoção, quando
conveniente e devidamente justificada, deve estar baseada em estudos técnicos
– jurídicos, econômicos, financeiros, operacionais etc. – muito bem elaborados
e criteriosos e não em decisões políticas ou modismos.
O modelo de contratação dos serviços de transportes em São José dos Campos,
com a realização de processos licitatórios separados para o fornecimento da
frota, gestão da bilhetagem e operação das linhas, em discussão desde meados
de 2021, não pode ser considerado uma experiência de sucesso. Mesmo
utilizando diferentes formas de divisão do objeto contratual, em diferentes
oportunidades, as licitações deram desertas ou foram frustradas,
particularmente, porque as questões econômico-financeiras e operacionais
adotadas não estavam compatíveis com as condições impostas pela realidade
dos fatos. Atualmente, as empresas operadoras foram recontratadas, para que
o sistema de transporte por ônibus voltasse a operar, normalmente.
Por outro lado, o modelo adotado na cidade do Rio de Janeiro, desde 2022,
particularmente para os corredores do sistema BRT, ainda precisa de mais
tempo, para uma avaliação técnica detalhada, para demonstrar que a divisão do
objeto contratual, entre fornecimento de veículos, operação da frota pública,
gestão da bilhetagem por terceiros e desapropriação de algumas garagens, de
fato, vai trazer algum benefício para o Poder Público e, principalmente, para os
usuários do sistema de transporte coletivo urbano de passageiros.
É preciso registrar que, quanto maior o número de contratos a serem
administrados, mais onerosa e mais complexa fica a gestão desses instrumentos
e, também, mais difícil fica a apuração de responsabilidades, no caso de
quaisquer dificuldades ou impropriedades verificadas na prestação dos serviços,
separadamente. Assim, a falha em um dos contratos contaminará a prestação
do conjunto dos serviços contratados e, certamente, comprometerá a qualidade
dos serviços prestados à população. Ademais, são bem poucas as cidades que
possuem órgãos de gestão devidamente organizados e aparelhados para
realizar, com eficiência e eficácia, a gestão de contratos de concessão, de
permissão ou de prestação de serviços.
Se o objetivo fundamental das mudanças é criar dificuldades ou enfraquecer as
atuais empresas operadoras, com a divisão do objeto dos contratos de
concessão, é melhor analisar, em profundidade, as experiências em curso e
rever essa "pseudotendência". Trocar o certo pelo duvidoso não costuma ser
uma boa prática, principalmente, quando se trata da prestação de um serviço
público essencial, estratégico e tão importante para a população. Aqui, vale a
pena chamar a atenção das autoridades e, também, dos operadores, para que
não caiam num eventual "canto da sereia".

(*) Francisco Christovam é Diretor Executivo (CEO) da Associação Nacional das Empresas de
Transportes Urbanos – NTU, Vice-Presidente da Federação das Empresas de Transportes de
Passageiros do Estado de São Paulo – FETPESP e da Associação Nacional de Transportes
Públicos – ANTP, bem como membro do Conselho Diretor da Confederação Nacional dos
Transportes – CNT.


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